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Exame de DNA: match não garante resultado justo

Interpretação errônea de microvestígios biológicos pode levar à prisão e condenação de inocentes

Foi um momento eureka!” – disse o geneticista Alec Jeffreys, pesquisador da Universidade de Leicester, quando se deu conta do enorme potencial de sua recente descoberta científica. Em 1985, ele publicou, com outros pesquisadores, uma série de artigos na revista Nature, sugerindo que a alta variação individual de sequências curtas do genoma humano poderia ser útil para fins de identificação de pessoas. Desde então, a descoberta de Jeffreys – ocorrida por acidente, pois ele investigava doenças hereditárias – revolucionou o mundo jurídico.

No ano seguinte, Jeffreys foi contatado por um detetive local, na expectativa de que pudesse ajudá-lo a resolver dois crimes bárbaros. Duas jovens de 15 anos, Lynda Mann e Dawn Ashworth, haviam sido estupradas e assassinadas, sob circunstâncias similares, em vilarejos próximos a Leicestershire. Os vestígios de sêmen encontrados nos corpos das duas vítimas revelavam o mesmo tipo sanguíneo. O principal suspeito era outro jovem de 17 anos, com dificuldades de aprendizagem, chamado Richard Buckland. Até então, a prova que os investigadores tinham contra Buckland era uma confissão ambígua. Ele havia vacilado quando indagado sobre a sua participação na morte de Ashworth, mas negou qualquer tipo de participação no estupro e na morte de Mann.

A polícia pediu a Jeffreys que comparasse amostras dos vestígios com o material genético de Buckland. A aplicação da nova técnica, desenvolvida pelo pesquisador que residia na cidade, ajudaria a fortalecer a hipótese da acusação. Quando Jeffreys rodou os testes no laboratório da universidade, confirmou que a fonte dos sêmens era uma só – tratava-se mesmo de um único criminoso serial. Mas, para a surpresa de todos, o DNA de Buckland não correspondia ao dos vestígios. As amostras foram reanalisadas pelo hoje extinto Serviço de Ciência Forense (Forensic Science Service), que corroborou a conclusão de Jeffreys. Buckland foi libertado depois de três meses sob custódia da polícia.

O estuprador e assassino de Mann e Ashworth só foi identificado no ano seguinte, após uma reviravolta surpreendente. O governo local instituiu uma campanha bem-sucedida para a formação de um banco de dados com perfis genéticos – o primeiro que se tem notícia na história. Mais de cinco mil homens residentes dos vilarejos em que os crimes ocorreram permitiram que suas amostras de sangue ou saliva fossem coletadas e analisadas. Inicialmente, nenhuma amostra de DNA apresentou correspondência com o perfil genético do perpetrador. Mas tudo mudou quando um homem comentou publicamente numa mesa de bar que havia falsificado um passaporte e fornecido uma amostra sua em nome de seu colega de trabalho, Colin Pitchfork. A informação chegou ao conhecimento da polícia, e Pitchfork foi submetido a um exame de DNA: deu match. Antes do resultado, Pitchfork acabou confessando ter estuprado e estrangulado as vítimas. Ele foi condenado em 1988.

Este foi o primeiro caso em que o teste de DNA foi utilizado em um processo penal. No ano anterior, Jeffreys havia ajudado a solucionar um caso de imigração, em que se discutia se um menor de idade era filho de uma mulher britânica. Ele conseguiu convencer as autoridades, e o caso não chegou a ser judicializado. Mas a investigação que levou à condenação de Pitchfork e à libertação de Buckland descortinou um horizonte promissor para o sistema de justiça criminal: o exame de DNA era capaz de ajudar na identificação de estupradores e assassinos e na libertação de inocentes. “Não tenho dúvida alguma de que ele [Buckland] teria sido considerado culpado se não fosse pela prova de DNA” – disse Jeffreys.

Um ano depois, o exame de DNA foi considerado inadmissível

A empolgação com a utilidade forense da nova tecnologia sofreu um abalo no ano seguinte. Em 1989, no julgamento do caso People v. Castro, a Suprema Corte de Nova Iorque considerou inadmissível o resultado de um exame de DNA em razão de sua baixa fiabilidade. Em uma das audiências preliminares mais longas na história dos Estados Unidos, os experts foram ouvidos ao longo de três meses e meio. As informações técnicas anexadas ao processo ocuparam mais de cinco mil páginas.

Joseph Castro era acusado de assassinar a sua vizinha, Vilma Ponce, que estava grávida, e a filha dela, Natasha, de apenas 2 anos de idade. Muitas provas apontavam para Castro como o criminoso. O marido de Vilma reconheceu Castro como o homem ensanguentado que ele viu sair do edifício momentos após o crime; e, segundo o testemunho de uma amiga, Vilma havia dito que ele a assediava sexualmente. Com o avanço das investigações, o próprio Castro viria a se declarar culpado, por meio de um acordo de plea bargain. A determinação da autoria do crime, portanto, não foi uma questão relevante. O que importava neste caso era esclarecer uma questão anterior: poderíamos confiar nas interpretações de exames de DNA que vinham sendo utilizadas para fundamentar condenações? 

Os eventos extraordinários deste caso ocorreram nos bastidores da Corte. Antes do acordo de plea bargain, a acusação pretendia apresentar um exame de DNA realizado em vestígios de sangue encontrados no relógio de pulso que Castro usava. O laudo do laboratório Lifecodes – um dos poucos que oferecia a tecnologia – afirmava que o material genético encontrado no vestígio era compatível com o DNA de Vilma; e que havia uma chance ínfima de “1 em 189.200.000” de que outra pessoa selecionada aleatoriamente na população fosse a origem do DNA. A fragilidade desse resultado veio à tona quando dois advogados que atuavam pro bono para a defesa, Barry Scheck e Peter Neufeld, participaram de uma conferência para discutir as aplicações forenses da nova tecnologia. Eles assistiram à apresentação de Eric Lander, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology, que questionava a genética populacional utilizada nas interpretações dos exames de DNA. Na ocasião, Scheck e Neufeld mostraram a Lander o laudo elaborado pelo laboratório Lifecodes. Lander e os demais cientistas que estavam na conferência reagiram com reprovação. Foi então que Scheck e Neufeld começaram a se dar conta de que as interpretações dos testes de DNA utilizadas para fundamentar condenações criminais poderiam estar erradas. 

Scheck e Neufeld convenceram Lander a assessorar a defesa de Castro, e ele atuou como perito da defesa nas audiências preliminares. “É minha opinião que a análise forense de DNA carece de diretrizes adequadas para a interpretação dos resultados” – afirmou Lander em um comentário sobre o caso publicado na Nature. Após ter acesso aos dados e materiais do caso, Lander também apontou problemas na interpretação das imagens e nos controles internos de qualidade do laboratório. Encerradas as audiências, a discussão entre os peritos da acusação e da defesa continuou em reuniões nos bastidores da corte. As reuniões foram sugeridas por Richard Roberts, o perito convocado pela promotoria. O resultado foi a elaboração de uma declaração conjunta, assinada por todos os peritos que participaram das audiências preliminares – exceto Michael Baird, o cientista-chefe do laboratório Lifecodes. Na declaração, eles afirmaram que “os dados de DNA neste caso não são cientificamente confiáveis o suficiente para apoiar a afirmação de que as amostras […] correspondem ou não. Se esses dados fossem submetidos a um periódico revisado por pares para dar suporte a alguma conclusão, não seriam aceitos”. No final, o juiz não admitiu que o laboratório Lifecodes afirmasse a existência de um match entre o DNA do sangue no relógio de Castro e o DNA de Vilma Ponce. 

People v. Castro foi um caso paradigmático em muitos aspectos. Primeiro, fomentou uma postura crítica do julgador em relação às provas periciais, distinguindo entre a aceitação geral de uma técnica na comunidade científica – o critério de admissibilidade de provas científicas estabelecido no precedente Frye – e questões específicas sobre a sua aplicação concreta. Além disso, o caso serviu de impulso para o aprimoramento do exame de DNA em particular. Nos anos que se seguiram, o National Research Council elaborou dois relatórios, em 1992 e 1996, com recomendações para garantir a fiabilidade dos exames. Mas talvez a consequência mais impactante foi o entusiasmo que o caso provocou na dupla de advogados Barry Scheck e Peter Neufeld. Eles expandiram seus conhecimentos técnicos, participando de eventos científicos e criando pontes com cientistas, e fundaram o Innocence Project – uma iniciativa encampada pela Cardozo Law School, em Nova Iorque, que passou a utilizar os testes de DNA para revisar condenações errôneas. Entre 1989 e 2020, conseguiram revisar 375 condenações com a ajuda de exames de DNA. A iniciativa foi replicada, e hoje existe uma Rede de Inocência – uma coalizão de projetos dedicados à libertação de inocentes e à prevenção de condenações errôneas. Em 2016, o Innocence Project chegou ao Brasil, por meio de uma parceria com a FGV Direito SP.

Já se vão mais de 30 anos desde o caso People v. Castro, e podemos nos perguntar: os avanços tecnológicos não reduzem as chances de erros em exames de DNA? Como veremos adiante, há situações em que essas chances aumentam. Compreender essa aparente contradição requer alguma familiaridade com o funcionamento do exame de DNA e com os impactos positivos e negativos das tecnologias mais recentes nesse campo.

Para entender os exames de DNA

O que se convencionou chamar de teste ou exame de DNA consiste em uma comparação entre perfis genéticos. O perfil genético é obtido a partir de qualquer célula do corpo humano ou fluidos corporais – como sangue, sêmen e saliva. Os perfis genéticos variam de uma pessoa para outra, e sua alta variabilidade torna o DNA uma ferramenta útil para identificar pessoas. Assim como o CPF, o perfil genético é formado por uma sequência de números, acrescido de um marcador que designa o sexo biológico. Vejamos um exemplo:

XY; 14, 19; 9.3, 9.3; 12, 15; 22, 23; 28, 30; 11, 14; 19, 20; 9, 12; 13, 15; 18, 18; 15, 15; 10, 13; 14, 16; 18, 21; 15, 16; 24, 29

Nesse perfil, o marcador XY designa o sexo biológico (masculino), enquanto a sequência de 16 pares de números correspondem a designações alélicas atribuídas a regiões específicas do DNA humano. Cada país adota por padrão uma quantidade de regiões do DNA para formação do perfil genético, e quantidades maiores ou menores que 16 são possíveis.

Em algumas situações, é possível que um perfil incompleto seja obtido durante o exame no laboratório. Por exemplo, o laboratório examina 16 regiões do DNA, mas só encontra alelos em 15 ou menos regiões. Isso pode ocorrer por uma série de motivos: o vestígio pode ser formado por uma quantidade muito pequena de material – o que chamamos de microvestígio –; o vestígio pode ter sofrido um processo de degradação (por exposição ao calor, ação de fungos etc.); as amostras coletadas podem ter sido embaladas, transportadas ou armazenadas de maneira inadequada; ou o próprio exame no laboratório pode ter ocorrido em situações inadequadas (por erros de procedimentos, problemas em equipamentos etc.).

Na investigação de um crime, os peritos criminais trabalham com materiais biológicos provenientes de duas fontes principais: amostras biológicas obtidas de pessoas (vivas ou mortas) e amostras biológicas obtidas em vestígios. Uma dúvida comum a ser sanada pelo exame de DNA envolve a origem de um vestígio biológico. Se encontramos uma mancha de sangue na roupa de uma pessoa suspeita de homicídio, por exemplo, a dúvida sobre a origem desse vestígio pode ser sanada por meio da comparação entre os perfis de DNA da vítima e da mancha de sangue.

Em situações ideais, a comparação entre dois perfis genéticos tem dois resultados possíveis: uma coincidência completa ou uma exclusão. A coincidência completa ocorre quando se dispõe de dois perfis completos e todos os pares de números são iguais, assim como o marcador do sexo biológico. Caso haja alguma diferença entre os números ou entre os marcadores de sexo biológico, o resultado é considerado uma exclusão, ou seja, a pessoa suspeita é “excluída” do conjunto de pessoas que poderiam ter dado origem ao vestígio.

Figura 1 – Coincidência completa entre dois perfis genéticos

Contudo, grande parte das situações reais envolve a utilização de perfis genéticos parciais, que não apresentam todos os pares de números esperados. Neste caso, os resultados possíveis são a coincidência parcial e a exclusão. A coincidência parcial ocorre quando todos os números disponíveis para comparação são coincidentes (assim como o marcador de sexo biológico, se estiver presente), enquanto a exclusão ocorre se ao menos uma diferença for observada.

Figura 2 – Coincidência parcial entre dois perfis genéticos

Por que um match não é suficiente? 

A obtenção de coincidências completas ou parciais não significa que o exame pericial está encerrado, pois a ocorrência de match tem três explicações possíveis: o suspeito é a origem do vestígio; alguma outra pessoa com o mesmo perfil genético do suspeito é a origem do vestígio; ou o match é um falso positivo provocado por uma troca de amostras ou outro tipo de erro. É necessário distinguir essas três possibilidades. Via de regra, assume-se que as chances de falso positivo são nulas ou desprezíveis; e a avaliação do match é baseada na probabilidade de o perfil de DNA ser encontrado em uma pessoa selecionada aleatoriamente na população de interesse. Um valor é atribuído a essa probabilidade com base em modelos bioestatísticos, o que permite ao perito atribuir um “peso” à prova de DNA. Esse peso é representado por uma grandeza matemática chamada razão de verossimilhanças, que fornece uma medida do quanto mais provável se torna a hipótese de mesma origem quando se observa uma correspondência entre perfis genéticos.

Isso pode soar abstrato, mas uma analogia ajuda a entender: pense em uma balança de pratos, onde um dos pratos recebe as provas favoráveis à acusação, e o outro recebe as provas favoráveis à defesa. Enquanto o match informa que a prova de DNA será acrescentada ao prato com as provas favoráveis à acusação, a razão de verossimilhanças informa o peso que essa prova terá. Por essa analogia, é também importante observar que a posição final dos pratos não dependerá apenas do exame de DNA, mas do conjunto de todas as demais provas admissíveis posicionadas sobre os dois pratos.

Mas o exame de DNA nem sempre se encerra após a avaliação do match, expressa pela razão de verossimilhanças. A natureza do vestígio pode demandar considerações adicionais por parte da perícia. Aqui precisamos introduzir o conceito de hierarquia de proposições

Quando se acredita que um vestígio biológico seja de um autor de um crime, há duas perguntas que precisam ser respondidas: “quem é a pessoa que deu origem a esse vestígio?” e “que atividade provocou a deposição desse vestígio?”. A primeira pergunta envolve a consideração de um par de proposições (ou hipóteses) referentes à origem ou fonte do vestígio: “o sêmen veio de determinada pessoa[que chamaremos de S]” (versão da acusação) ou “O sêmen veio de outra pessoa” (versão da defesa). A segunda pergunta, por sua vez, envolve a consideração de um par de proposições referentes à atividade que gerou o vestígio: “S teve relação sexual com V” (acusação) ou “S não tem relação com o evento em apuração” (defesa). Existe ainda uma terceira pergunta, que fica a cargo do julgador: “O réu praticou uma conduta criminosa?”. Essa pergunta envolve a consideração de um par de proposições referentes ao crime: “S estuprou V” ou “S não tem relação com o crime”. 

A interpretação de evidências científicas deve ser realizada de acordo com essa hierarquia, considerando proposições sobre origem, atividade e crime, nesta sequência. O avanço de um nível para o nível seguinte sempre requer a consideração de informações adicionais, e erros ocorrem quando se “transporta” a avaliação de um nível para outro. Um erro comum consiste em associar a avaliação do match, que considera as hipóteses sobre a origem do vestígio, à atividade que o gerou. match nos auxilia a esclarecer dúvida quanto à origem do vestígio, mas não quanto à atividade que o produziu. Ele não fornece informações que nos permitam avaliar se o DNA foi transferido inocentemente, ou se houve alguma forma de contaminação na cena do crime ou no laboratório. Quando a avaliação desses diferentes cenários demanda conhecimento técnico-científico, não é prudente deixá-la a cargo dos atores jurídicos – algumas prisões injustas já aconteceram por esse motivo, como veremos adiante.

Com os avanços tecnológicos, os riscos de erro aumentaram

No passado, os exames de DNA exigiam quantidades de amostras biológicas relativamente grandes, como alguns mililitros de sangue, que permitiam fácil observação direta e a identificação do material em questão (sangue, saliva, sêmen etc.). Em tais condições, uma pessoa leiga pode interpretar um match considerando proposições referentes à atividade sem grande risco de cometer um engano. Por exemplo: no caso de um furto residencial, obtém-se um match entre o DNA do sangue encontrado em uma janela de vidro quebrada e a amostra biológica fornecida pelo suspeito. A interpretação desse match quanto à origem do vestígio é realizada pelos peritos criminais, e a interpretação desse mesmo match quanto à atividade que levou à presença de sangue na janela quebrada pode ser feita pelo investigador ou julgador. 

Contudo, avanços tecnológicos na área de genética forense vêm permitindo a obtenção de perfis genéticos a partir de amostras biológicas cada vez menores, e atualmente algumas poucas células, invisíveis a olho nu, podem ser suficientes. Ocorre que, quanto menor e menos visível a amostra, maior é a incerteza quanto à sua relação com o crime em apuração. Peter Gill, professor na Universidade de Oslo e um dos principais pesquisadores na área de genética forense, define o microvestígio de DNA como “qualquer amostra onde haja incerteza sobre sua associação ao evento criminoso – sendo possível que sua transferência tenha ocorrido antes do evento do crime (transferência inocente) ou após o evento do crime (transferência mediada)”. Nesse tipo de situação, a interpretação do match quanto às possíveis atividades que deram origem ao microvestígio não é trivial, pois requer um conjunto de considerações sobre fenômenos de transferência, persistência, prevalência e recuperação. Por exemplo, é preciso avaliar se o material genético foi depositado sobre uma superfície diretamente ou por meio de transferência indireta; qual a sua capacidade de permanecer sobre uma superfície ao longo do tempo; se o material biológico do suspeito poderia estar presente antes do crime; e a eficiência do método de recuperação usado para a coleta da amostra.

A interpretação errônea de microvestígios biológicos não é incomum, e casos de prisões e condenações baseadas nesse tipo de prova têm sido registrados – alguns chegando a inspirar ótimos documentários. Vejamos alguns dos casos:

  • David Butler foi preso preventivamente após seu DNA ser encontrado nas unhas de Anne Marie Foy, vítima de homicídio. Era um microvestígio de DNA, e o match foi apenas parcial. O DNA de Butler estava disponível no banco de perfis genéticos porque ele próprio havia permitido a coleta de seu material no passado, na tentativa de ajudar a encontrar o criminoso que havia assaltado a casa de sua mãe. Uma condição de saúde que provocava intensa descamação da pele de Butler corroborou a hipótese de transferência indireta de seu DNA para a vítima. Ele era taxista, e a transferência foi possivelmente mediada por algum passageiro. Em 2012, ele foi inocentado, tendo permanecido 8 meses na prisão.
  • Amanda Knox e Rafaelle Sollecito, seu namorado, foram condenados a 26 e 25 anos de prisão, respectivamente, por envolvimento na morte de Meredith Kercher, com quem Knox morava. As principais provas periciais usadas contra eles consistiam em microvestígios de DNA obtidos no cabo e na lâmina de uma faca e no fecho do sutiã da vítima. O DNA encontrado no cabo da faca correspondia ao DNA de Knox, mas como essa faca era usada por ela no dia-a-dia, a avaliação quanto à origem do DNA era irrelevante. Neste caso, a avaliação quanto às atividades não permitia distinguir entre “cortar alimentos” e “esfaquear uma pessoa”. Já o DNA encontrado na lâmina da faca correspondia ao DNA da vítima, mas o perfil era apenas parcial. Além disso, a pequena quantidade de material biológico resultava em leituras inferiores ao limite adotado no laboratório para conclusões seguras. O protocolo exigia que o exame fosse repetido para confirmação do match, mas isso não foi feito pelos peritos. Já o DNA obtido no fecho do sutiã correspondia ao de Sollecito, mas a cadeia de custódia desse vestígio era bastante questionável: ele foi coletado na cena do crime quarenta e seis dias após o primeiro exame do local. Circunstâncias do caso, associadas a procedimentos inadequados, tornaram a hipótese de contaminação por via indireta mais provável do que um contato direto entre Sollecito e o fecho do sutiã. Em 2015, eles tiveram suas condenações criminais definitivamente revisadas, tendo permanecido 4 anos na prisão
  • Lukis Anderson foi preso após seu DNA ser encontrado sob as unhas de Raveesh Kumra, vítima de um homicídio. Lukis era alcoólatra e vivia em situação de rua. No momento do crime, ele estava hospitalizado, intoxicado e inconsciente. Quando interrogado, ele disse que não se lembrava de nada. Levou algum tempo, mas finalmente descobriram que uma mesma equipe de paramédicos conduziu Lukis para o hospital e, horas depois, checou os sinais vitais da vítima. Tudo indica que o oxímetro usado nas duas situações transferiu o DNA de Lukis para a unha de Kumra. Em 2013, ele foi libertado, tendo permanecido 5 meses em prisão preventiva.

Em comum, os casos acima envolvem a interpretação inadequada de microvestígios de DNA. O match entre perfis genéticos não era suficiente, pois nada informava sobre as atividades que produziram os materiais biológicos examinados. 

O elevado poder de detecção das técnicas atualmente aplicadas na genética forense apresenta outro desafio: a obtenção de misturas de perfis de DNA. Quando uma amostra biológica apresenta materiais oriundos de duas ou mais pessoas, o exame revela a presença de três ou mais alelos em regiões do DNA onde um perfil unitário apresenta apenas um ou dois. Alguns tipos de amostras permitem distinguir com clareza os perfis genéticos presentes (ex.: sêmen coletado na vagina da vítima de estupro), mas isso nem sempre é o caso, em especial quando há perfis de três ou mais pessoas. Quanto mais complexa a mistura, maior a incerteza quanto à eventual contribuição de uma pessoa suspeita para o vestígio biológico, e menos útil para a investigação ou o processo.

Com a elevada sensibilidade das técnicas, episódios de contaminação de amostras tornam-se mais prováveis e frequentes. A falta de adequação dos protocolos de isolamento e preservação de cenas de crime contribui para este problema. Pessoas conversando sem máscara em um local de crime nos anos 1990 provavelmente não produziriam uma contaminação detectável nos vestígios, mas devido aos avanços tecnológicos que ampliaram o poder de detecção, este comportamento nos dias atuais pode comprometer o exame pericial de diferentes formas: levando à detecção de um perfil de DNA não relacionado ao crime (mas tratado como tal) ou inviabilizando um vestígio biológico real (que, contaminado, passa a apresentar uma mistura de DNAs de difícil interpretação). Ou seja, a preservação da cadeia de custódia dos vestígios biológicos se tornou ainda mais necessária. 

Colocando em outros termos, a excelência dos laboratórios de genética forense precisa ser acompanhada pela excelência da perícia de local de crime – que, devemos lembrar, não depende apenas da adequada atuação dos peritos, mas também da atuação das forças policiais responsáveis pela primeira resposta aos eventos criminosos. Conforme disposto no Código de Processo Penal, a cadeia de custódia dos vestígios tem início com a chegada do primeiro agente policial à cena do crime. Quanto maior esse tempo de chegada, maior é o tempo em que os vestígios do crime permanecem expostos, passíveis de serem alterados, modificados, contaminados ou subtraídos.

O DNA da Justiça criminal brasileira

A despeito da crença na infalibilidade de exames de DNA, erros já foram reconhecidos pela justiça brasileira em relação a casos de investigação de paternidade. O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás condenou um laboratório a pagar danos materiais e morais a um homem que assumiu por anos obrigações financeiras de um filho que foi incorretamente identificado como seu. Já o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios indenizou um homem que por mais de sete anos não acompanhou o crescimento de seu filho em razão de equívoco laboratorial. Uma diferença importante entre exames genéticos para fins de investigação de paternidade e para fins criminais é a natureza dos materiais examinados: em regra, as amostras analisadas no primeiro caso são coletadas em situações controladas, enquanto na seara criminal necessariamente haverá amostras com origens não controladas – os vestígios. Se erros em exames de paternidade ocorrem, temos ainda mais razões para crer que erros em casos criminais ocorrem também. Não é demais lembrar que o vestígio é sempre uma amostra imperfeita: produzida acidentalmente, possivelmente contaminada, geralmente incompleta, eventualmente degradada e nem sempre relacionada ao evento de interesse. 

Ainda não se sabe de qualquer caso de prisão ou condenação errônea baseada em exame de DNA no Brasil. Contudo, há um caso que destaca a possibilidade de erro na comunicação entre peritos e julgadores. Trata-se da condenação injusta de Israel de Oliveira Pacheco, que passou quase dez anos preso por supostamente ter estuprado uma mulher. O crime ocorreu em 2008, e Pacheco foi preso no mesmo ano, com base em um reconhecimento pessoal precário. Um dos principais problemas ao longo do processo foi a atribuição de maior peso ao reconhecimento pessoal do que à prova científica que corroborava a inocência de Pacheco. Essa prova consistia no exame de uma mancha de sangue encontrada na cena do crime. Emitido em 2009, o laudo de DNA elaborado pelo Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul trazia a conclusão: “Podemos excluir que o material biológico presente no fragmento de tecido da colcha pertença ao suspeito Israel”. Logo após a condenação em primeira instância, seu advogado recorreu ao Tribunal de Justiça. No texto do acórdão que manteve a condenação de Pacheco, nota-se que o laudo foi interpretado em sentido diametralmente oposto, tratando como positivo um resultado negativo:

Destaco que o laudo […] obteve resultado positivo, isto é, constatou haver sangue humano nos materiais periciados, tendo o laudo de DNA concluído “que o material biológico presente no fragmento de tecido da colcha pertença ao suspeito Israel […]”.

Inocentado pelo STF apenas em 2018, Pacheco poderia ter retomado sua vida ainda em 2009, após o resultado da perícia. Não é possível determinar a causa exata da falha de comunicação ora narrada, se decorrente de uma leitura apressada do laudo, de uma possível falta de clareza na redação do laudo ou de algum outro motivo. O caso é interessante, entretanto, pois ilustra as dificuldades de comunicação entre peritos e atores jurídicos, e como falhas nessa interação podem jogar por terra todo o processo que teve início na preservação da cadeia de custódia e resultou na emissão do laudo.

Passos importantes para garantir a maior qualidade dessa prova foram dados com a aprovação da Lei 13.964/2019, que introduziu os artigos 158-A a 158-F no Código de Processo Penal. Esses artigos regularizaram a cadeia de custódia, passo fundamental para a diminuição de erros decorrentes da contaminação de vestígios. O Superior Tribunal de Justiça, contudo, tem entendido que a quebra da cadeia de custódia não gera nulidade obrigatória da prova. Este entendimento reflete uma tendência do Judiciário brasileiro em admitir meios de provas pouco fiáveis, na expectativa de que seu peso seja atribuído no momento de valoração do conjunto probatório. Tal postura é preocupante porque a admissão de um exame de DNA cuja integridade esteja comprometida aumenta os riscos de uma condenação errônea – dada a elevada credibilidade que lhe é concedida. Isso para não mencionarmos a promoção de um uso irracional dos escassos recursos periciais disponíveis. 

Como mencionado em nossa primeira reportagem, o Conselho Nacional de Justiça publicou recentemente o documento Perícia Criminal para Magistrados. O texto resulta de uma colaboração com profissionais de segurança pública para promover um maior diálogo entre a Polícia e o Poder Judiciário. Seu conteúdo, infelizmente, deixa de fora discussões mais atuais e avançadas. Relatórios com avaliações críticas e recomendações, e que tiveram impacto na regulação e no aprimoramento das ciências forenses em muitos países, sequer são citados. O documento menciona inclusive as análises de marcas de mordeduras como forma de identificação forense – uma técnica sem qualquer validação científica. Com relação ao exame de DNA em particular, o documento menciona superficialmente algumas limitações, mas não entra em qualquer consideração sobre os problemas de interpretação de um match. De suas 142 páginas, o documento dedica apenas meia lauda para a interpretação de exames de genética forense.

Outro fator de preocupação é a limitação do nosso banco de dados de perfis genéticos — o que explica a razão pela qual ainda temos dificuldades de utilizar essa tecnologia em contexto criminal investigativo e, portanto, analisar o seu uso pelos tribunais. A título comparativo, de acordo com dados da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos nacional, até maio de 2022, contávamos com 23.628 perfis genéticos oriundos de vestígios e 116.641 provenientes de indivíduos cadastrados criminalmente. Já na base de dados do Reino Unido, até março de 2021, havia 665.969 perfis de vestígios de cena de crime e 6.682.131 perfis de indivíduos; e no National DNA Index System dos Estados Unidos, até novembro de 2022, existiam 1.226.160 perfis de vestígios, 15.677.230 perfis de infratores e 4.888.230 de pessoas detidas. 

Mas a ampliação dos bancos de dados de perfis genéticos sem a devida preservação da cadeia de custódia não é suficiente. Tampouco podem ser desconsiderados assuntos delicados como o risco de condenação de inocentes (diante da indevida inserção de determinados perfis no sistema), afronta ao direito à intimidade e não autoincriminação, entre outros. 

Um exemplo brasileiro sinaliza a importância da expansão dos bancos de perfis genéticos — o caso do “Maníaco de Contagem”. Em Minas Gerais, na região metropolitana de Belo Horizonte, entre 2009 e 2010, diversas mulheres foram violentadas e estranguladas. A análise dos vestígios genéticos coletados nas cenas dos crimes permitiram saber que era um mesmo homem. Apenas após a quinta ocorrência, Marcos Antunes Trigueiro foi capturado. Marcos já havia sido preso muito antes, em 2004, por latrocínio, mas diante da ausência do cadastro de seu perfil genético em um banco de dados, não foi identificado após o cometimento do primeiro estupro seguido de morte – logo, outras quatro mortes não foram evitadas. 

O número de peritos em exercício é outro aspecto importante que impacta a extensão de dados dos bancos de perfis genéticos. Afinal, a alimentação de bancos de perfis genéticos é feita através da colaboração constante entre os peritos que atuam nos locais de crime, que tem a função de coletar vestígios, e os que atuam nos laboratórios, que obtêm perfis genéticos e têm a responsabilidade de inseri-los em bancos de dados. Os números disponíveis indicam limitações graves na quantidade de peritos em mais de um estado brasileiro. O relatório do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP) do Ministério Público do Estado do Paraná, publicado em 2018, sinalizava que somente 18% das vagas previstas em lei para a Polícia Científica estavam ocupadas no ano de 2017. O relatório sintético do GAESP do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, publicado em 2019, aponta que as unidades do departamento de polícia técnica e científica sofrem não apenas com insuficiência de pessoal, como também deficiência de insumos e equipamentos necessários para perícias. 

O poder do exame de DNA depende crucialmente da atuação de todos os atores envolvidos na produção desse meio de prova. O investimento em estrutura e insumos para laboratórios de genética forense é um passo necessário, mas não suficiente para que as provas baseadas em DNA tenham a fiabilidade que lhe é geralmente atribuída. Isso tem importância redobrada quando consideramos os desafios impostos pelos avanços tecnológicos nessa área, que produzem resultados analíticos de interpretação cada vez mais complexos a partir de vestígios cada vez mais frágeis. A conscientização do público jurídico e de profissionais da segurança pública quanto às limitações do exame de DNA nos parece um passo fundamental para o enfrentamento da criminalidade e a promoção da justiça no Brasil.

“Quando a justiça ignora a ciência”

Esta é a segunda reportagem do projeto “Quando a justiça ignora a ciência”. Apresentamos aos leitores do JOTA uma série de reportagens sobre o mau emprego das ciências forenses, a ausência de conhecimentos científicos e até mesmo a adoção voluntária de práticas pseudocientíficas no sistema de justiça criminal brasileiro. Contamos histórias reais de erros nos sistemas de Justiça criminal brasileiro e de outros países, e explicamos em detalhes as causas e consequências da ausência e do mau emprego de evidências científicas nas fases pré-processual e processual do sistema de persecução penal. Fundamentados na literatura científica relevante, propomos formas de mitigar os riscos de erros judiciais e, assim, colaborar para o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal.

Na primeira reportagem, abordamos um dos casos mais trágicos de falso positivo no Brasil — Daniele Toledo do Prado, conhecida como o “monstro da mamadeira”, erroneamente acusada de matar a própria filha com overdose de cocaína. O texto explorou as limitações do teste preliminar de drogas e os problemas na Lei de Drogas brasileira e precedentes. 

Fonte: https://www.jota.info/

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